domingo, junho 10, 2007

A Idade do Silêncio

A primeira linguagem que os humanos tiveram foi os gestos. Não havia nada de primitivo nesta língua que brotava das mãos das pessoas, nada que hoje se diga que não pudesse ser dito nesse imenso rol de movimentos possíveis com os ossos finos das mãos e dos dedos. Os gestos eram complexos e subtis, envolvendo uma delicadeza de movimentos que se perdeu completamente desde então.
Durante a Idade do Silêncio, as pessoas comunicavam mais, e não menos. As necessidades de sobrevivência exigiam que as mãos quase nunca estivessem paradas, e a única altura em que as pessoas não estavam a dizer isto ou aquilo (e por vezes nem aí) era quando estavam a dormir. Não havia qualquer distinção entre os gestos da linguagem e os gestos da vida. A acção de construir uma casa, por exemplo, ou de preparar uma refeição, exprimia tanto como fazer o gesto para dizer, Eu Amo-te ou Sinto-me sério. Quando uma mão era usada para esconder uma cara assustada por um ruído violento, isso era dizer alguma coisa; e quando os dedos das mãos eram usados para apanhar alguma coisa que alguém deixara cair no chão, também aí, algo estava a ser dito. Naturalmente, também havia mal-entendidos. Por vezes, um dedo podia ser erguido apenas para coçar o nariz, e no caso de haver um contacto visual fortuito com um amante nesse preciso momento, então o nosso amante poderia tomar acidentalmente esse gesto, em tudo idêntico, ao que usaríamos para dizer, Agora percebo que fiz mal em amar-te. Estes mal-entendidos eram de partir o coração. No entanto, como as pessoas sabiam como era fácil eles acontecerem, como não viviam na ilusão de se entenderem perfeitamente umas às outras, estavam habituadas a interromper-se umas às outras para perguntar se tinham entendido bem. Às vezes estes mal-entendidos eram até desejáveis, pois davam às pessoas o ensejo de dizer Desculpa, estava só a coçar o nariz. Claro que sei que fiz bem em amar-te. Devido à frequência destes erros, com o tempo o gesto para pedir perdão evoluiu para a forma mais simples. O simples gesto de abrir a palma da mão passou a querer dizer: perdoa-me.
Tirando uma excepção, praticamente não existe nenhum registo desta linguagem primeira. A excepção, na qual se baseia todo o conhecimento sobre o assunto, é uma colecção de setenta e nove gestos fossilizados, impressões de mãos humanas congeladas a meio das frases, conservadas num pequeno museu em Buenos Aires. Uma delas representa o gesto para Às vezes quando a chuva, outra para Ao fim destes anos todos, e outra para Terei feito bem em te amar?
Se em grandes reuniões ou festas, rodeados de pessoas de quem nos sentimos distantes, sentimos por vezes as nossas mãos pender desajeitadamente na ponta dos braços – se não sabemos bem o que fazer com elas, possuídos pela tristeza que sobrevém quando reconhecemos a estranheza do nosso próprio corpo – é porque as nossas mãos têm memória de um tempo em que a divisão entre corpo e mente, cérebro e coração, o que está dentro e o que está fora, era muito menor. Não é que nos tenhamos esquecido da linguagem dos gestos por completo. O hábito de movermos as nossas mãos enquanto falamos ficou-nos desse tempo. Bater palmas, apontar com o dedo, esticar o polegar para cima: são tudo artefactos de gestos antigos. Dar as mãos, por exemplo, é uma forma de relembrarmos a sensação de estarmos juntos sem dizer nada. E à noite, quando a escuridão já não nos deixa ver, sentimos a necessidade de gesticular uns aos outros para nos fazermos entender.

2 comentários:

foryou disse...

E é muito bom quando no silêncio das palavras, apenas um ligeiro gesto nos faz sentir.

Å®t Øf £övë disse...

Nefertiti,
Palavras... palavras soltas... palavras banais...
As palavras podem alegrar-nos, podem entristecer-nos, podem juntar ou separar pessoas, podem fazer-nos confiar, ou até atraiçoar-nos. As palavras são simples ecos que nos saem pela boca. Umas vezes com sentido... outras nem tanto. Eu não deixo de acreditar nas palavras, mas acredito mais nos gestos... nos gestos espontâneos, nas expressões, ou nos olhares que nos despem, porque acho que os rostos e os corpos dizem mais que as palavras.
A verdade é que a maioria das pessoas mente, e para isso as palavras dão muito jeito, porque não ajudam à verdade, servem mais para camuflar, do que para revelar. É por isso que muitas vezes não acredito em tudo que as pessoas dizem, porque o que elas calam tem muito mais informação para me ser revelada, do que aquilo que lhes sai pela boca.
Os olhares, os gestos, as expressões, e as posturas mentem muito menos do que as palavras. Por isso é que sou da opinião de que quando comunico por escrito, não transmito mais do que uma ínfima parte da minha verdade, mas isto não quer dizer que vos minta, apenas me considero uma pessoa ambiciosa, que procura juntar às palavras os gestos, o olhar, e a beleza de uma frase especial. Sim, porque para mim não há nada mais completo do que aliar à doçura de um gesto que toque a alma, a eloquência de uma palavra que encha o coração...

Beijinhos.