domingo, maio 13, 2007

Guio na noite

Guio em direcção ao horizonte. Na cabeça, palavras que (não) disseste ecoavam. Terias falado com intenção ou teria a boca contrariado o coração?
Uma hora. Duas. Minutos que passam. Um. Outro. Silêncio. As curvas sucedem-se. A estrada mantém-se, fiel, igual, constante. Fria mas presente. Frio: é o que sinto, o coração arrepia-se pelas lembranças de ti. Estás sempre presente. Mesmo agora que, com a recordação de ti, lágrimas abrem caminho pelo meu rosto.
Perco a noção de tudo: não sei onde estou, não sei se conduzo há uma hora ou 3 dias, não sei dizer se é noite ou faz sol. Foi sempre assim, contigo. Nunca soube há quanto tempo te conhecia. Não percebia se eram 5 ou 10 os minutos que passavam sem te beijar. Não sei se te amava, se te adorava, apenas. Sei sim, que sem ti, o meu dia cedo se tornava noite e eu, inevitavelmente, adormecia. 1,50 Kms.
Estou algures. Perdido na noite, com ajuda da lua, vejo a neve, que se mantém branca, e uma casa, ao fundo. Tímidas, as luzes que a iluminam no interior. Ainda a neve: mesmo á distância da velocidade, nota-se que é espessa, mas fina. Assim eras tu, ainda que nem sempre presente, a tua voz não me largava nunca, as tuas palavras que me murmuravam o caminho, a direcção, sem nunca me deixar afundar. Desespero. Não oiço a tua voz. A compreensão de que repetir tal acto seja uma impossibilidade esmaga-me, rasga-me o coração em dois. Não sei o que fazer. Não consigo dizer se, ao chorar, grito o teu nome ou o sussurro, baixinho... Preciso de ar. Sufoco nas memórias.
Saio na noite, o carro aquece o ar, derrete a neve. Olho a lua que se sente pequena com a tua ausência. Não suporto recordar os teus últimos dias, não posso evitar fazê-lo. Foram dias intensos, vividos por mim com uma alegria melancólica, por ti com uma dor grotesca: tinhas-me diante de ti, o infinito que não conseguirias nunca alcançar. E chorávamos juntos. Baixinho. Lágrimas rebentavam no chão com uma suavidade tremeneda.
Aterrado. Foi como te vi partir, cada vez mais longe de mim, cada vez mais perto do nada. Vazio. Fixas os teus olhos em mim. A tua face é de novo a lua. Volta o choro. Com ele, soluços que não consigo controlar e que são também a única expressão possível da dor que não suporto, que me consome.
Aperto a neve, com firmeza. Como tu antes dela, escapa-se-me por entre os dedos, por muito que tente contrariá-lo. Não sei quem sou. Perdi a minha identidade. O meu eu põs-se a caminho. Persegue agora o tu que o completa, apercebendo-se no caminho que nunca te alcançará. Não desiste, acelera sempre, sabendo-o em vão. Duas lágrimas que caem. Já desesperado, rendido á evidência, grita o segredo que só tu conheces. Amo-te.

Desisto do caminho, sabendo-o a minha morte.
Adeus.

3 comentários:

foryou disse...

Está lindo este texto. Descritivo. Sentido. Prende-nos. Bem composto, bem construido.

Não sei se tem alguma ligação à realidade mas ainda assim... só não gostei do fim. Desistir? Adeus? Essas pelavras deveriam ser banidas do dicionário.

Enquanto vivos nunca há desistência, quando muito haverá mudança de caminho! E adeus só direi lá do além, e mesmo assim, não sei não... :)

Å®t Øf £övë disse...

João,
Quero agradecer-te este teu contributo para o enriquecimento deste espaço tão cheio de sentires. Terei o maior prazer em te ver fazer do "Pedaços de Nós" a tua casa. Gostei muito deste teu texto, parece-me uma imagem bem real de momentos que de uma forma ou de outra todos nós já vivemos. Vaguear por ai sem destino, apenas com a cabeça cheia de pensamentos. Quem amou já perdeu (nem que por uma só vez) a noção do tempo. As mãos deslizam pelo volante, e procuram a recordação perfeita, e o tempo passa sem se fazer notar. Perdemos sempre a noção do tempo e do espaço quando pensamos em alguém que amamos.
João, na noite escura e fria, andavas a vaguear pelas estradas do desconhecido, como uma alma solitária. Procuravas o teu destino. Por entre as lágrimas do teu choro, tens que ter a esperança de um dia veres um vulto... o vulto dela... a aproximar-se.
Continua a conduzir e pensa, como será o rosto dela... Não consegues deslumbrar uma imagem? Por muito ténue que seja? Mas mantém a esperança.
Continua a conduzir, por essas estradas desconhecidas, pela noite escura e fria, porque finalmente a manhã irá chegar, e tu vais ver que afinal essas estradas não eram assim tão desconhecidas, nem andavas assim tão perdido, nem estava tanto frio assim... pois finalmente, como que trazida pelo vento, ela vai chegar, dar-te um beijo, e vocês vão-se fundir num só corpo, e nada nem ninguém vos irá separar.
Este não é um texto apenas para amantes da morte, tem que ser visto como um texto para amantes da vida, da esperança, e do amor.
Abraço.

Anónimo disse...

O amor, eternamente o amor!
E que bom é que assim seja, que ele exista e se manifeste!
Sentimento que arrebata de nós o nosso melhor e o nosso pior...
Que nos engrandece e nos destrói... nos edifica e nos consome...
Que cogita caminhadas impelindo-nos na busca incansável e incessante da sua reciprocidade... tantas e tantas vezes infrutíferas... mas não obstante possíveis adversidades e impedimentos, perene e inquestionavelmente perseverante...
O amor... aquele que me faz sorrir, que me faz chorar... que me queima pelo tanto que é imenso dentro do meu peito...
O amor... aquele que me abstrai da dura realidade, que me faz acreditar, crer... que me apazigua a alma e alimenta a esperança...

E de amor, João, fala o teu belíssimo texto! Pejado de sentimento e emoções!
Prendeu-me e fez-me “viajar” pela sua forma expositiva, descritiva e pelas sensações que dele emergem e suscitaram em mim um estado de suma inércia, de completo abandono ao império dos sentidos.

Não considero que haja um fim quando se ama... há sim, sempre, um princípio, um começo... o despontar de uma seguinte e nova realidade...
“Adeus”, é demasiado definitivo para ser pronunciado...

Um beijo.